Intervenção da Presidente da ASF na "2.ª Conferência Internacional do Módulo Jean Monnet sobre Direito dos Seguros da União Europeia: Desafios na era dos ODS"
Lisboa, 11 de julho de 2024
NOVA School of Law
Muito bom dia a todos.
Cumprimento todos os conferencistas e participantes.
Dirijo um cumprimento especial à Senhora Professora Doutora Margarida Lima Rego, Diretora da NOVA School of Law, a quem agradeço o convite para abrir esta conferência, o que faço com muito gosto e interesse.
O tema geral da Conferência deste ano é a sustentabilidade dos seguros (em inglês: “Sustainable Insurance”).
Na minha intervenção vou por isso dar um contributo para que o termo Sustainable Insurance não seja associado a uma dimensão acessória, mas a uma dimensão intrínseca e orgânica que o setor internaliza na sua atividade, de modo a assegurar a relevância do seu papel na sociedade e na economia.
Selecionei os seguintes desafios específicos que passarei sumariamente em revista:
• O Value-for Money dos produtos financeiros e a promoção da literacia financeira.
• A digitalização das cadeias de valor do setor segurador e os riscos sociais que lhes estão associados.
• A utilidade atual e futura dos seguros para a sociedade e para a economia.
• A diversidade de género na gestão do setor segurador.
• A gestão de investimentos financeiros enquanto instrumento de apoio à transição climática e ao desenvolvimento sustentável.
Todos sabemos que o setor segurador detém um papel chave na sociedade e na economia.
Assegura a mutualização de riscos cujas consequências não seriam absorvíveis de forma individual, a gestão especializada desses riscos e a oferta de soluções de investimento para as poupanças individuais.
Estes objetivos são indissociáveis da supervisão e da regulação da atividade seguradora que asseguram uma gestão sã e prudente e práticas adequadas de conduta de mercado.
No fundo, a proteção do consumidor/investidor.
▪ Comecemos pelo desafio do Value for Money e da literacia financeira.
Apesar de uma maior exposição a riscos relacionados com as alterações climáticas, os consumidores nem sempre estão cientes do impacto desses riscos, em particular na gestão da sua vida financeira.
A literacia financeira desempenha, por isso, um papel crucial na sensibilização para esta matéria, contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a confiança dos consumidores na criação de estratégias atempadas de gestão e na mitigação do impacto dos riscos envolvidos.
Mas a literacia financeira, que não constitui responsabilidade isolada dos supervisores, é apenas um dos vértices da atuação da ASF, que deve ser adequadamente conjugado com as questões relacionadas com o conceito de Value for Money, que tem vindo a ganhar importância, e com a informação ao consumidor.
Um produto, para além de ser bem vendido, isto é, bem explicado e adequado ao público-alvo, deve entregar valor ao consumidor, por via de um modelo de negócio equilibrado e de uma política tarifária que não procure “recompensar” o segurador e o distribuidor de uma forma desproporcionada.
Nesta medida, torna-se especialmente relevante aquilo que já afirmei publicamente, por várias vezes, com estas ou outras palavras: um consumidor informado, constitui-se, ele próprio, num disciplinador do mercado.
Adicionalmente, os consumidores devem saber alinhar as suas preferências de sustentabilidade com as escolhas que fazem, conhecendo as características dos produtos classificados como sustentáveis e percebendo aquilo que os distingue dos produtos ditos “tradicionais”, em particular os riscos muito específicos envolvidos, como o “greenwashing” ou “social washing”.
Acresce que os produtos financeiros podem ser muito distintos entre si.
Há produtos que não têm como missão promover quaisquer objetivos específicos em matéria de sustentabilidade, enquanto outros promovem características ambientais ou sociais ou uma combinação entre ambas e, ainda, outros que têm efetivamente como objetivo a realização de investimentos sustentáveis.
Este é um grande desafio a requerer progressos numa matéria em que a Europa dispõe de uma framework regulatória que tem de se traduzir em capacidade de inclusão do consumidor neste ecossistema para dele poder beneficiar e se constituir um agente ativo de transformação.
▪ Abordemos agora o desafio da digitalização das cadeias de valor do setor segurador, em particular na sua interação com os consumidores.
Sabemos que a digitalização permite remover limitações geográficas, físicas e temporais da comunicação entre as empresas de seguros e o consumidor, para, por exemplo, a consulta de produtos disponíveis e respetiva contratação ou a regularização de sinistros.
A digitalização do setor segurador permite ambicionar uma crescente agilidade de processos, maior eficiência nos custos e alargamento do universo alvo de potenciais clientes.
Mas importa acautelar o efeito social desta transição.
É necessário partilhar com os consumidores os benefícios de uma cadeia de valor mais eficiente em termos de custos, nomeadamente através do reflexo nos prémios de seguro, proporcionais aos custos decorrentes dos riscos cobertos.
Mas é também vital assegurar que a digitalização das cadeias de valor coexiste com a continuidade de um setor segurador inclusivo, ou seja, que esta digitalização coexiste com uma transição que contempla meios mais tradicionais, pré-digitais, prevenindo a fragmentação geracional ou o reforço da infoexclusão.
▪ Passemos agora ao desafio da utilidade atual e futura dos seguros para a sociedade e para a economia.
Este desafio está intimamente relacionado com a relevância da atividade seguradora.
Cimentar a perceção de que os produtos de seguros estão disponíveis para os riscos onde são efetivamente necessários, mais uma vez, não é apenas uma dimensão acessória ou desejável do negócio: é um requisito indispensável para manter a sua relevância.
Convido os presentes a refletirem sobre o papel atual e futuro do setor segurador em duas preocupações centrais da economia e da sociedade: as catástrofes naturais e o progressivo envelhecimento das populações num quadro de maior longevidade.
As catástrofes naturais destroem valor de forma instantânea e podem interromper o curso normal da atividade económica.
No entanto, permanecem em aberto gaps de proteção críticos quanto a eventos climáticos e ao risco sísmico, em particular no nosso país, que constituem uma janela de entrada de vulnerabilidades para toda a sociedade, economia e sistema financeiro.
O setor segurador, pela sua natureza e know-how, deve ser um agente central na inovação para a oferta de soluções de cobertura adaptadas à realidade nacional e para a promoção de instrumentos coletivos de proteção.
A ASF está a trabalhar numa proposta de criação de um instrumento coletivo de proteção face ao risco sísmico no país, e nesse sentido, empreendeu uma recolha de informação de grande amplitude junto do mercado nacional, de modo a diagnosticar a amplitude desse gap.
Temos vindo a interagir com especialistas de resseguro, académicos e outros stakeholders relevantes de modo a reforçar o conhecimento sobre o perfil do risco sísmico no nosso país.
Como referi, o setor segurador deve inovar no sentido de maior oferta de coberturas, que devem ser claras e facilmente entendíveis quanto aos riscos e termos de ocorrência cobertos.
Embora as técnicas de pricing possam ser incentivadoras da adoção de medidas estruturais individuais de mitigação dos riscos, refletindo-se em menores custos de cobertura seguradora, uma investigação recente a nível europeu nesta matéria, na qual a ASF participou, concluiu que, de momento, não existem práticas sistematizadas de incentivo da adoção de medidas individuais de mitigação dos riscos climáticos nas práticas de subscrição Não Vida a nível europeu.
Outra preocupação central prende-se com o papel que o setor segurador pode e deve desempenhar em relação ao envelhecimento e longevidade das populações.
Aqui deixo, para todos pensarmos, várias perguntas.
Que soluções tem o setor segurador para oferecer na sustentabilidade do acesso a cuidados de saúde nas faixas etárias mais avançadas?
E que soluções tem para oferecer às faixas etárias jovens, desde muito cedo, nos seguros de saúde?
Qual a sua visão futura quanto a soluções de poupança e investimento que visam a preparação da suficiência de recursos financeiros em idade mais avançada?
Em que medida o setor segurador se diferencia, e acrescenta valor, face às soluções que podem ser encontradas em outros segmentos do sistema financeiro?
▪ Permitam-me agora focar o desafio da governação, em particular a questão da diversidade de género nos órgãos de gestão dos operadores, tema cada vez mais relevante.
A diversidade nos órgãos de administração e fiscalização, em particular a diversidade de género, contribui, entre outros aspetos, para a existência de opiniões e experiências diferenciadas, para evitar o fenómeno do “pensamento de grupo” e favorecer a independência das decisões e o espírito crítico e, consequentemente, para uma melhor gestão do risco e resiliência das empresas.
Em termos de enquadramento legal, os regimes jurídicos aplicáveis ao acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora e da atividade fundos de pensões estipulam que as entidades supervisionadas pela ASF devem dispor de uma política interna de seleção e avaliação que “deve promover a diversidade de qualificações e competências necessárias para o exercício da função, fixando objetivos para a representação de homens e mulheres e concebendo uma política destinada a aumentar o número de pessoas do género sub-representado com vista a atingir os referidos objetivos”.
É de salientar que esta obrigação legal resultou de uma inovação do legislador nacional, por impulso da ASF no âmbito da preparação daqueles diplomas.
▪ Finalmente, o desafio da gestão de investimentos financeiros enquanto instrumento de apoio à transição climática e ao desenvolvimento sustentável.
Enquanto grande investidor institucional – numa perspetiva de longo-prazo e não imediatista – o setor segurador pode desempenhar um papel estratégico no encaminhamento de recursos financeiros para a transição climática e para o desenvolvimento sustentável.
Assinalo algumas iniciativas regulatórias em curso que visam reforçar este papel.
O processo de revisão da “Diretiva Solvência II” conduziu ao mandato dirigido à EIOPA (Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma) para averiguação técnica de diferenciais de risco com base em considerações climáticas.
Igualmente impulsionado pela revisão da “Diretiva Solvência II”, o papel dos riscos de biodiversidade está também a ser investigado, alargando o leque de riscos ambientais para os quais o setor se prepara.
Em abril deste ano, foi aprovado pelo Parlamento Europeu o texto relativo à transparência e integridade das atividades de atribuição de notações (ratings) ESG.
Em conjunto com a Diretiva relativa ao relato de sustentabilidade das empresas, os investimentos dirigidos à esfera de sustentabilidade beneficiarão de mais informação, que passa a estar mais estandardizada, bem como de requisitos mais exigentes de escrutínio da mesma.
Por fim, refira-se o exercício transversal ao setor financeiro europeu, atualmente em curso, denominado One-Off Fit-for-55 Climate Scenario Analysis, no qual a ASF está também a participar, que se destina a avaliar a resiliência daquele setor, bem como a sua capacidade de contribuir para a transição para uma economia de baixo carbono.
Julgo que todos estes desafios que acabei de partilhar são bem uma evidência da relevância do setor segurador para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Termino, desejando a todos uma proveitosa Conferência.
Muito obrigada.